O caminho revolucionário<br> que Abril abriu

Zillah Branco

O des­mo­ro­na­mento da URSS e de vá­rios países do bloco so­ci­a­lista fez com que os ac­tuais países com meta so­ci­a­lista – China, Laos, Vi­et­name, Co­reia do Norte e Cuba – pro­cu­rassem nas suas con­di­ções his­tó­ricas e fi­lo­só­ficas de re­sis­tência per­ma­nente às formas de do­mínio im­pe­rial o es­teio para pros­se­guir a luta pela au­to­nomia na­ci­onal dentro das con­di­ções ad­versas do sis­tema ca­pi­ta­lista.

Os «donos do poder em Por­tugal» é que estão a mais, como es­teve Sa­lazar

A des­truição das po­ten­ci­a­li­dades de de­sen­vol­vi­mento eco­nó­mico au­tó­nomo dos países sub­de­sen­vol­vidos pelo do­mínio co­lo­ni­a­lista e im­pe­ri­a­lista des­pertou as na­ções la­tino-ame­ri­canas para a ne­ces­si­dade de cons­truir a in­de­pen­dência po­lí­tica. O co­nhe­ci­mento de cada re­a­li­dade na­ci­onal aponta o ca­minho de li­ber­tação ins­pi­rado na­queles que so­bre­vi­veram às pres­sões ex­ternas dos pre­da­dores.

Perdeu-se o apoio de uma po­tência so­ci­a­lista – a URSS – que en­fren­tava fron­tal­mente a sua opo­si­tora ca­pi­ta­lista – os EUA – que re­pre­sen­tava a ponta de lança do im­pe­ri­a­lismo, e con­ti­nu­aram a su­portar a pressão que vinha de sé­culos de atraso e mi­séria her­dados do co­lo­ni­a­lismo. Aquelas na­ções foram man­tidas em si­tu­ação de po­breza ex­trema como as de­mais dos con­ti­nentes da Amé­rica La­tina, Ásia e África, in­fil­tradas por es­piões e pro­vo­ca­dores de dis­túr­bios in­ternos, re­ce­bendo a tí­tulo de in­for­mação e cul­tura um lixo se­le­ci­o­nado pela grandes em­presas de co­mu­ni­cação so­cial, es­po­li­ados nos va­lores de seus pro­dutos e mão de obra ex­por­tados.

Tanto a cul­tura mi­lenar do Ori­ente como o so­fri­mento se­cular dos países sub­de­sen­vol­vidos en­si­naram aos povos a arte da guer­rilha e a cons­ci­en­ti­zação das massas para criar um subs­trato re­sis­tente capaz de su­portar as di­fi­cul­dades de vida, im­postas pelas elites do­mi­nantes, sem

aban­donar a for­mação do ser hu­mano e o pre­paro re­vo­lu­ci­o­nário para emergir di­ante do ini­migo quando em crise sis­té­mica. As oito dé­cadas de exis­tência de uma po­tência so­ci­a­lista serviu de su­porte ao acesso a uma cul­tura mo­derna sem a cen­sura da elite ca­pi­ta­lista para que o mundo

sub­de­sen­vol­vido de­sen­vol­vesse as bases do seu co­nhe­ci­mento da re­a­li­dade e a cons­ci­ência de um ca­minho re­vo­lu­ci­o­nário.

A co­lo­ni­zação eu­ro­peia ini­ciada no sé­culo XVI foi se­guida pelo ne­o­co­lo­ni­a­lismo quando sur­giram mo­vi­mentos de in­de­pen­dência nas na­ções do­mi­nadas, e mo­der­ni­zada pelo ne­o­ca­pi­ta­lismo de versão de­mo­crá­tica dentro do es­par­tilho do im­pe­ri­a­lismo tendo como ins­tru­mentos o Banco Mun­dial e o FMI. Estes pro­cessos man­ti­veram os países sub­de­sen­vol­vidos da Amé­rica La­tina, África e Ásia afo­gados na po­breza e na de­pen­dência po­lí­tica e eco­nó­mica de um sis­tema hostil à hu­ma­ni­dade, que era con­si­de­rado «ci­vi­li­zado e cristão» por ter ins­ti­tu­ci­o­na­li­zado as fontes do saber ci­en­tí­fico e re­li­gioso nas suas na­ções ricas do Oci­dente que su­gava as ri­quezas das co­ló­nias.

Os «im­pé­rios co­lo­ni­za­dores» fi­zeram tábua rasa das na­ções do­mi­nadas, sem re­co­nhecer as cul­turas mi­le­nares do Ori­ente e de povos na­tivos na África e no con­ti­nente ame­ri­cano para di­zimá-los e es­cra­vizá-los como se fossem ani­mais. Ob­ti­veram grandes lu­cros com o co­mércio de seres hu­manos

es­pa­lhados por todo o mundo, es­po­li­aram os seus pa­tri­mó­nios, apro­pri­aram-se dos seus co­nhe­ci­mentos, es­ma­garam as suas cul­turas e crenças im­pondo o mo­delo ins­ti­tu­ci­o­na­li­zado nas uni­ver­si­dades e igrejas, a ferro e fogo.

Aos povos que re­sis­tiram com a força das suas co­mu­ni­dades in­tro­du­ziram, sob a via das ac­ções ca­ri­ta­tivas, as do­enças con­ta­gi­osas e as drogas como vírus so­ciais – va­ríola na Amé­rica e ópio no Ori­ente. Bem co­nhe­cida ficou a Guerra do Ópio entre a China e o Im­pério Bri­tâ­nico no sé­culo XIX. Du­rante o sé­culo XX as ex­pe­ri­ên­cias com pro­dutos abor­tivos mis­tu­rados ao leite em pó doado a po­pu­la­ções fa­mintas no Brasil, ou que pro­vo­cavam vá­rias do­enças neu­ro­ló­gicas através do abas­te­ci­mento de água, foi de­nun­ciado por Fred Ken­nedy pouco antes de ser as­sas­si­nado nos EU. As redes in­ter­na­ci­o­nais de droga assim como as formas mais va­ri­adas de cor­rupção de mem­bros de

es­tados para manter o poder im­pe­rial do­mi­nante são uma cons­tante na vi­gência do sis­tema ca­pi­ta­lista.

Se­mentes

Hoje fi­camos sur­pre­en­didos com o cres­ci­mento da vi­o­lência na so­ci­e­dade, da des­truição dos va­lores hu­ma­nistas, da uni­dade das fa­mí­lias, dos pro­cessos não con­cluídos contra altas per­so­na­li­dades que roubam mi­lhões ao Es­tado, com o apa­ga­mento da res­pon­sa­bi­li­dade de mortes ocor­ridas nas praxes aca­dé­micas, com a uti­li­zação de co­baias hu­manas por fa­mosos la­bo­ra­tó­rios far­ma­cêu­ticos, e tantas tor­turas men­tais e fí­sicas pra­ti­cadas im­pu­ne­mente. Mas isto sempre ocorreu du­rante a his­tória do sis­tema ca­pi­ta­lista desde a sua origem co­lo­ni­a­lista.

A ex­pe­ri­ência so­ci­a­lista eu­ro­peia su­cumbiu ao poder ca­pi­ta­lista, mas deixou se­mentes nos países que sou­beram re­sistir adap­tados à sua his­tória de po­breza ge­rida com in­te­gri­dade e con­vicção nos pró­prios va­lores éticos e de in­de­pen­dência. Os BRIC con­vivem com o sis­tema ad­verso por ca­mi­nhos di­fe­rentes que a his­tória legou a cada um. A par­ti­ci­pação po­pular é for­ta­le­cida na cons­ci­ência da sua res­pon­sa­bi­li­dade para en­frentar a luta ou aceitar a es­cra­vidão. Os ca­mi­nhos con­tornam os obs­tá­culos des­gas­tando as pres­sões que se mul­ti­plicam sem perder de vista o rumo da li­ber­dade.

Em Por­tugal, a Re­vo­lução de Abril teve as suas raízes na luta clan­des­tina po­pular du­rante o pe­ríodo da di­ta­dura fas­cista. Ao con­trário de ou­tras na­ções em­po­bre­cidas da Eu­ropa que também exer­ceram o poder co­lo­nial como pontas de lança sob con­trole do do­mínio im­pe­ri­a­lista bri­tâ­nico, de­sen­volveu-se uma cons­ci­ência ci­dadã entre os tra­ba­lha­dores, a in­te­lec­tu­a­li­dade e as forças mi­li­tares, que teve por meta a in­de­pen­dência, o for­ta­le­ci­mento au­tó­nomo das forças pro­du­tivas e a de­fesa in­tran­si­gente dos va­lores e do pa­tri­mónio na­ci­onal. A am­bição de uma elite ca­pi­ta­lista que par­ti­cipou da­quele pro­cesso re­vo­lu­ci­o­nário através do golpe mi­litar e de uma rá­pida adesão po­lí­tica às es­tru­turas de poder recém for­madas para con­duzir o País, serviu de fio con­dutor para que o im­pe­ri­a­lismo lan­çasse os seus «vírus» para trans­formar o pro­cesso re­vo­lu­ci­o­nário numa mo­der­ni­zação su­bor­di­nada ao

centro eco­nó­mico e mi­litar da Eu­ropa.

O go­verno de Vasco Gon­çalves, no qual par­ti­cipou o PCP com apoio do mo­vi­mento sin­dical e das forças de­mo­crá­ticas de ampla abran­gência ide­o­ló­gica e re­li­giosa, tomou as me­didas ba­si­lares para uma trans­for­mação re­vo­lu­ci­o­nária na­ci­onal: fim do do­mínio co­lo­nial, na­ci­o­na­li­zação da banca e das em­presas pú­blicas a favor do pa­tri­mónio na­ci­onal, com­bate ao mo­no­pólio pri­vado dos fac­tores de pro­dução, so­bre­tudo la­ti­fún­dios e ri­quezas na­tu­rais, que de­ve­riam ser or­ga­ni­zados tendo em vista a ocu­pação da mão-de-obra exis­tente, a in­ves­ti­gação ci­en­tí­fica e tec­no­ló­gica, a pro­dução dos ali­mentos e bens in­dis­pen­sá­veis à toda a po­pu­lação e à ex­por­tação.

Es­tavam lan­çadas as bases para que fosse criada uma eco­nomia e or­ga­ni­zada uma so­ci­e­dade com au­to­nomia e li­ber­dade de cons­ci­ência de ci­da­dania, bases para um país afirmar a sua in­de­pen­dência pe­rante as ou­tras na­ções e aper­fei­çoar as con­di­ções de vida do seu povo. Os in­si­di­osos pre­con­ceitos an­ti­co­mu­nistas e contra-re­vo­lu­ci­o­ná­rios pro­mo­vidos por elites ex­ternas e in­ternas, que per­de­riam a so­be­rania sobre um povo que ainda não co­nhe­cera a li­ber­dade, des­per­taram an­ta­go­nismos e com­pe­ti­ções po­lí­ticas pro­me­tendo lu­cros in­di­vi­duais na par­tilha dos pro­dutos na­ci­o­nais e pri­vi­lé­gios de classe para os seus apoi­antes. In­tro­du­ziram a cul­tura ca­pi­ta­lista como meta de cres­ci­mento eco­nó­mico e uma falsa lin­guagem ca­ri­dosa con­tra­pondo-se à luta ne­ces­sária para o de­sen­vol­vi­mento das forças pro­du­tivas com so­li­da­ri­e­dade e res­peito hu­ma­nista da co­esão po­pular.

Da ficção à re­a­li­dade

A linha do golpe pre­va­leceu sobre a da cons­ci­ência na­ci­onal ade­quada à re­a­li­dade de Por­tugal. Foi adop­tado o mo­delo do que viria a ser a União Eu­ro­peia, uma ficção que co­briu o ter­ri­tório de cen­tros co­mer­ciais, es­tá­dios de fu­tebol e in­dús­trias es­tran­geiras que vi­eram ex­plorar a mão-de-obra ba­rata, de es­tradas por onde es­coam os pro­dutos im­por­tados e saem os emi­grantes em busca de em­pregos, de uma cul­tura mo­derna pré-fa­bri­cada para ali­enar as po­pu­la­ções sem acesso à ver­da­deira in­for­mação ne­gada pelos meios de co­mu­ni­cação sub­missos às elites mun­diais. E, de­pois veio a crise do sis­tema com as dí­vidas con­traídas pela gestão per­du­lária de go­ver­nantes ir­res­pon­sá­veis que traíram a Re­vo­lução de Abril, ven­deram o pa­tri­mónio na­ci­onal ao des­ba­rato, des­truíram a ca­pa­ci­dade pro­du­tiva e en­ri­que­ceram os seus com­parsas po­de­rosos, apa­gando o ca­minho para a in­de­pen­dência de Por­tugal.

Com o velho dis­curso fa­riseu da hu­mil­dade ne­ces­sária ao povo «de­vedor», da ca­ri­dade com os que tudo per­deram, con­fessam que a «aus­te­ri­dade im­posta em Por­tugal é de­ma­siada porque os que a de­fi­niram não ti­nham ex­pe­ri­ência» (de­cla­ração do Con­selho Eu­ropeu di­vul­gada pela RTP a 28/​04/​14). E nada dizem da es­per­teza que ti­veram de aplicar a aus­te­ri­dade aos tra­ba­lha­dores,

idosos e cri­anças, en­quanto os altos cargos re­cebem sa­lá­rios mi­li­o­ná­rios apesar da «falta de ex­pe­ri­ência». Assim agiu a troika e o FMI na sua fa­tí­dica missão de des­truir os povos.

In­te­res­santes as pa­la­vras de Vasco Graça Moura: «A Eu­ropa Co­mu­ni­tária deixou de ser, para ter­ceiros, o El­do­rado mí­tico que foi du­rante muito tempo para ter­ceiros. E al­guns con­ven­ci­mentos mais in­gé­nuos dos au­tóc­tones quanto às ex­ce­lên­cias da fór­mula en­con­trada co­meçam também a es­bo­roar-se».(...) «a ex­pe­ri­ência tem mos­trado que, na prá­tica, as coisas não são bem como se es­pe­rava e que esse ideal de uma Eu­ropa har­mo­ni­o­sa­mente cons­truída e con­ver­gente, quer no de­sen­vol­vi­mento eco­nó­mico sus­ten­tado, quer na qua­li­dade de vida dos seus ci­da­dãos, está a sair tão caro quanto frus­trado». (...) O sis­tema não é de freios e con­tra­pesos ins­ti­tu­ci­o­nais ao nível da Eu­ropa. É antes uma teia obs­cura de in­te­rac­ções e con­di­ci­o­na­mentos po­lí­ticos por via de uma in­ter­go­ver­na­men­ta­li­zação do todo di­tada pelos mais fortes e aco­li­tada pela co­re­o­grafia im­pune dos eu­ro­bu­ro­cratas» (in «A iden­ti­dade cul­tural eu­ro­peia», FFMS, No­vembro/​2013, pp.15-18).

O País perdeu uma opor­tu­ni­dade de se tornar in­de­pen­dente, mas o ca­minho da li­ber­dade não foi fe­chado. Hoje com­pre­ende-se me­lhor a re­a­li­dade de uma His­tória de he­róis, con­quis­ta­dores, co­lo­ni­za­dores e de grandes per­so­na­li­dades que se des­ta­caram como ideó­logos, fi­ló­sofos, mú­sicos,

li­te­ratos, ci­en­tistas, in­te­lec­tuais e tra­ba­lha­dores a nível in­ter­na­ci­onal. Os «donos do poder em Por­tugal» é que estão a mais, como es­teve Sa­lazar (e Ca­e­tano), di­tador aliado de Hi­tler por meio sé­culo.

Por­tugal, com as suas ri­quezas na­tu­rais, aí está com o seu povo, capaz de re­tomar o ca­minho re­vo­lu­ci­o­nário sem se deixar en­ganar por trai­dores ou inex­pe­ri­entes am­bi­ci­osos.